
Enquanto o agronegócio brasileiro alcançou o segundo melhor resultado da série histórica para o mês de novembro, com impressionantes US$ 13,4 bilhões em exportações, Mato Grosso do Sul nadou na contramão e registrou queda significativa no valor embarcado no mesmo período. A contradição expõe vulnerabilidades estruturais do modelo exportador estadual: concentração excessiva em poucos produtos e dependência perigosa de um único mercado comprador.
Dados do painel da Fiems (Federação das Indústrias do Estado de Mato Grosso do Sul) mostram que o Estado exportou US$ 592,8 milhões em novembro, valor substancialmente abaixo dos US$ 718,2 milhões registrados em outubro — uma queda de aproximadamente 17,5% em apenas um mês.
No volume físico, a retração foi ainda mais evidente e preocupante. As exportações sul-mato-grossenses somaram 1,33 milhão de toneladas em novembro, contra 1,9 milhão de toneladas no mês anterior — redução de cerca de 30% no volume embarcado.
Os números levantam questões fundamentais: por que MS recua justamente quando o agronegócio brasileiro como um todo prospera? O modelo de concentração em celulose e dependência da China é sustentável? Pequenos e médios produtores do estado estão se beneficiando desse modelo exportador ou apenas grandes grupos agroindustriais capturam os ganhos?
A pauta concentrada que preocupa
Apesar da queda, a pauta exportadora manteve o mesmo perfil perigosamente concentrado em commodities, com destaque para a pasta química de madeira (celulose), que respondeu por impressionantes 30,8% das exportações do Estado em novembro, seguida pelas carnes, com 28,6%, e pelo açúcar, com 9,6%.
Apenas esses três produtos somam quase 70% de tudo que Mato Grosso do Sul vende para o exterior. Essa concentração extrema cria vulnerabilidade enorme: oscilações de preço ou demanda em qualquer um desses mercados afeta drasticamente as exportações totais do estado.
Em outubro, a situação era ainda mais concentrada: a celulose teve participação de 38,7% do total exportado por MS, enquanto as carnes respondiam por 20,1% e o açúcar por 13,7%. A redução da participação da celulose de outubro para novembro (de 38,7% para 30,8%) ajuda a explicar boa parte da queda no valor total, em um mês marcado por preços internacionais ainda pressionados, apesar do crescimento do volume nacional.
A perigosa dependência da China
No comércio exterior de MS, a China seguiu como principal destino absoluto, com compras que somaram US$ 182,7 milhões em novembro — representando aproximadamente 31% de todas as exportações estaduais no mês. Na sequência aparecem Países Baixos e Estados Unidos, com US$ 43 milhões e US$ 29 milhões, respectivamente.
Em outubro, a dependência do mercado chinês era ainda maior e mais alarmante, com US$ 255,8 milhões — mais de um terço de todas as exportações do estado indo para um único país —, além de embarques relevantes para Itália e Países Baixos.
Essa dependência estrutural da China é arriscadíssima. Qualquer mudança na política comercial chinesa, desaceleração da economia do país, tensão geopolítica, ou simplesmente decisão estratégica de buscar fornecedores alternativos pode derrubar drasticamente as exportações de MS, com impactos severos sobre empregos, arrecadação estadual, economia local.
O Brasil como um todo também depende significativamente da China — o país asiático respondeu por 29% de todo o valor exportado pelo agronegócio brasileiro em novembro. Mas ao menos em nível nacional há maior diversificação de produtos e destinos. MS, com sua concentração em celulose e carnes indo majoritariamente para China, está exponencialmente mais vulnerável.
O paradoxo: Brasil cresce, MS recua
O contraste não poderia ser mais gritante. Segundo nota divulgada pelo MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), o crescimento das exportações brasileiras em novembro foi impulsionado principalmente pelo aumento do volume embarcado, com destaque para carnes, soja, café e produtos florestais, mesmo em um ambiente de preços médios mais baixos.
Se o Brasil como um todo está vendendo bem carnes e produtos florestais (categoria que inclui celulose), por que MS — grande produtor justamente desses itens — está recuando?
As explicações possíveis são preocupantes:
Timing de embarques: Pode ser simplesmente questão de sazonalidade ou cronograma de navios — alguns meses têm mais embarques programados, outros menos. Mas se for apenas isso, por que a oscilação foi tão dramática (queda de 30% no volume)?
Preços mais baixos especificamente para produtos de MS: É possível que celulose e carnes produzidas em MS tenham enfrentado cotações particularmente deprimidas, mesmo que produtos similares de outras regiões tenham tido desempenho melhor.
Problemas logísticos específicos: Gargalos em portos, atrasos em transporte, questões de infraestrutura que afetaram especificamente embarques de MS.
Redução da produção: Safras menores, abates reduzidos, problemas climáticos ou sanitários que diminuíram a oferta disponível para exportação.
Concentração em grandes grupos: Se as exportações de MS são dominadas por poucos grandes grupos agroindustriais (empresas de celulose, frigoríficos gigantes), decisões estratégicas dessas empresas (segurar produto esperando melhores preços, direcionar produção para mercado doméstico, etc.) podem causar oscilações grandes mês a mês.
Nenhuma dessas explicações é particularmente tranquilizadora. Todas apontam para fragilidades estruturais.
Quem se beneficia (e quem não) das exportações
É fundamental fazer a pergunta que raramente aparece nas análises técnicas de comércio exterior: quem efetivamente se beneficia desses US$ 592,8 milhões exportados por MS em novembro?
Grandes grupos de celulose: As empresas que dominam a produção de pasta química de madeira em MS são gigantes nacionais e internacionais. Os lucros dessas exportações vão para acionistas, muitos deles estrangeiros. O que fica no estado são alguns empregos (cada vez menos, já que a produção de celulose é altamente mecanizada), impostos (frequentemente com isenções e benefícios fiscais) e impactos ambientais (consumo intensivo de água, monocultura de eucalipto).
Grandes frigoríficos: A exportação de carnes é dominada por poucos grupos gigantes. Produtores de gado vendem para esses frigoríficos, mas frequentemente recebem preços espremidos. Trabalhadores dos frigoríficos têm empregos, mas historicamente enfrentam condições de trabalho difíceis, salários nem sempre dignos, alta rotatividade.
Usinas de açúcar: Concentradas em poucos grupos, com trabalhadores que historicamente enfrentam condições precárias no corte de cana (embora mecanização tenha avançado, eliminando empregos).
Pequenos e médios produtores: Esses, em grande medida, não participam diretamente das exportações. Pequenos produtores de MS cultivam alimentos para mercado interno (mandioca, hortaliças, frutas, leite), criam animais em pequena escala, produzem para sobrevivência e abastecimento local. Eles não aparecem nas estatísticas de exportação — mas são justamente eles que mais precisam de apoio, crédito, assistência técnica, mercados garantidos.
A ilusão dos números agregados
Quando vemos manchetes sobre “MS exportou US$ 592 milhões”, parece impressionante. E de fato é volume significativo de recursos entrando no estado. Mas é fundamental desagregar esses números:
Quanto fica efetivamente no estado? Depois que as empresas pagam custos de produção, impostos, logística, quanto do lucro é reinvestido em MS versus enviado para matrizes em outras regiões ou países?
Quantos empregos de qualidade são gerados? Celulose gera pouquíssimos empregos por hectare plantado ou por tonelada produzida. Mecanização da agricultura e da pecuária reduziu drasticamente necessidade de mão de obra. Os empregos que existem são bem remunerados ou precários?
Qual o impacto ambiental? A monocultura de eucalipto para celulose consome água intensivamente, afeta biodiversidade, concentra terras. A pecuária extensiva pressiona biomas. Estamos exportando commodities mas deixando passivos ambientais?
Como fica o abastecimento interno? Quando priorizamos exportação de carne, açúcar, produtos agrícolas, estamos garantindo que a população de MS tem acesso adequado e a preços justos a esses produtos?
O modelo que precisa ser questionado
A queda das exportações de MS em novembro, enquanto o Brasil prospera, é oportunidade para questionar o modelo de desenvolvimento do estado:
Por que concentrar tanto em celulose? Seria possível diversificar a matriz produtiva, incentivando culturas que gerem mais empregos, tenham menor impacto ambiental, fortaleçam agricultura familiar?
Por que depender tanto da China? Não seria estratégico buscar ativamente diversificação de mercados compradores, reduzindo vulnerabilidade?
Por que priorizar exportação? Não deveríamos primeiro garantir que a população de MS está bem alimentada, com produtos locais acessíveis, antes de exportar toneladas de comida e celulose?
Onde estão as políticas para pequenos produtores? Os recursos públicos, a infraestrutura, a assistência técnica estão apoiando agricultura familiar ou apenas facilitando operações de grandes grupos exportadores?
Desenvolvimento para quem? Os números de exportação impressionam, mas a renda está sendo distribuída? Trabalhadores rurais, pequenos produtores, comunidades locais estão prosperando ou apenas grandes grupos corporativos?
O risco da próxima crise
A dependência de MS de celulose e China cria risco enorme de crise futura. Imagine cenários perfeitamente plausíveis:
China reduz importações de celulose (por recessão econômica, substituição por fornecedores de outros países, desenvolvimento de capacidade produtiva própria): as exportações de MS desabam, empresas reduzem produção, empregos são cortados, arrecadação do estado despenca.
Preços internacionais de celulose caem drasticamente (por excesso de oferta global, mudanças tecnológicas que reduzem uso de papel): empresas têm margens comprimidas, investimentos são cortados, algumas podem fechar unidades.
Tensões geopolíticas entre Brasil e China, ou entre China e outros países, afetam comércio: exportações são interrompidas ou oneradas com tarifas.
Eventos climáticos extremos (secas, geadas, tempestades) afetam plantações de eucalipto ou pastagens: produção cai, comprometendo contratos de exportação.
Em qualquer desses cenários, MS sofreria desproporcionalmente por sua falta de diversificação. Estados com economias mais diversas, menos dependentes de commodities e mercados únicos, têm muito mais resiliência.
O que deveria ser diferente
Para reduzir vulnerabilidades e construir desenvolvimento mais sustentável e inclusivo, MS precisaria:
Diversificar a pauta produtiva: Incentivar culturas variadas, agroindustrialização local, produção de alimentos para mercado interno, serviços, turismo, economia criativa.
Fortalecer agricultura familiar: Com crédito acessível, assistência técnica pública, compras institucionais (PAA, PNAE), apoio à comercialização, garantindo que pequenos produtores prosperem.
Buscar novos mercados: Esforço ativo de prospecção de compradores em diferentes países e regiões, reduzindo dependência da China.
Priorizar abastecimento interno: Políticas que garantam que alimentos produzidos em MS primeiro abasteçam adequadamente a população estadual, e só então sejam exportados excedentes.
Regular impactos ambientais: Limites claros para expansão de monoculturas, proteção de recursos hídricos, preservação de biodiversidade, recuperação de áreas degradadas.
Distribuir benefícios: Tributação adequada de grandes grupos exportadores, investimento dos recursos em serviços públicos, infraestrutura que beneficie todos.
Transparência: Dados detalhados sobre quem exporta, quanto lucra, quantos empregos gera, quais impactos causa — permitindo que sociedade cobre responsabilidade.
Novembro como alerta
A queda de 17,5% nas exportações de MS em novembro, enquanto o Brasil batia recordes, não deveria ser tratada como mera oscilação estatística. É alerta vermelho sobre vulnerabilidades estruturais de um modelo de desenvolvimento concentrado, dependente, excludente.
MS tem potencial enorme — terras produtivas, clima favorável, localização estratégica, população trabalhadora. Mas esse potencial precisa ser direcionado para desenvolvimento que beneficie todos, não apenas grandes grupos corporativos.
Os US$ 592,8 milhões exportados em novembro parecem muito, mas significam pouco se não se traduzem em empregos dignos, renda distribuída, comunidades fortalecidas, ambiente preservado, segurança alimentar garantida. Desenvolvimento real se mede não pelo que exportamos, mas pela qualidade de vida de quem vive aqui — especialmente dos mais vulneráveis.
